Parir

All Rights Reserved © 2014 Samuel Pereira Pinto


São antagónicos os sentimentos que disputam a hegemonia do artista. A dor poética, por um lado, e a satisfação que se materializa no leitor confluem no momento único que é o processo poético. À responsabilidade do poeta - construtor de visões alternativas da realidade - em honrar o seu dom e resgatar o banal da sua condição, junta-se o não menos pesado fardo da insatisfação, que necessariamente está por detrás da escrita: subterfúgio de uma vida que deve passar ao lado, para que possa ser filtrada pelo olhar. A palavra condensa em si toda a angústia, veículo de emoções puras que inevitavelmente têm de ser materializadas para que os outros as vejam. É grande o que se perde, surpreendente por ventura o que se ganha, pelo caminho. Sádico o poeta!





parir

De peito feito
orgulho
reclamo a autoria
de todas as dores
de parto.
Eu,
que diariamente
me obrigo ao dever
que é o do homem
de parir,
também a mim
me dói dentro
a porfia
que por detrás
do silêncio está
dilacerando...
trazendo a ferros,
expulsando a fórceps
o poema
que para a luz
nasce.
/ parir
/ vício das palavras
/ e se...
/ angústia poética
/ poeta-higiénico
/ o desígnio do poeta
/ noções de economia
/ sobre clarividência
/ disfarce
/ sobre livros
 
 
 
 
 
 
 
vício das palavras

Outra vez
o vício das palavras!
A ansiedade da esquadria,
o desespero das emoções
metidas num esquife...
E, de novo
a circunstância dos conceitos
a tangibilidade da rocha...
Como se
a luz do sol,
a espuma dos dias,
não se satisfizessem
num corpo vazio.
Como se
os olhos sozinhos
não pudessem resistir
às vagas deste mar
que me vai por dentro
sem a bóia da caneta,
a prancha do papel.
e se...

E se...
cansado da sentença,
diante da tentação da noite,
o poeta,
cedendo à gravidade dos olhos
depusesse na almofada as letras
deixando os dias orfãos do olhar...
Ficariam
as palavras vadias sem abrigo,
o silêncio sem voz,
as paixões banais,
as mais vagas emoções,
naufragando
assim-assim...
angústia poética

A promessa da tinta negra
sobre o branco do papel,
do chumbo
confirmando a trivial folha
no peso da sua função.
A angústia do poeta:
a densidade do olhar, o silêncio das mãos...
as palavras: algodão!
o desígnio do poeta

Não existem versos negros nem versos brancos, tão pouco poetas sombrios ou abençoados pela luz.

Existe apenas a escuridão que uma vez alcançando o homem reclama a poesia. E existe, depois, a opção pela verdade trágica ou a ironia das palavras que se riem da desgraça do próprio criador; a arte como promessa, ainda, de uma existência que se sabe já perdida.

O desígnio sádico do poeta é ter de ser a folha negra onde a claridade dos dias alheios ganha o seu alvor, sabendo ao largo, à margem de tudo isto, dispensando questões de figura-fundo,  a vida que de sabida está já ferida de morte corre indiferente ao alcance de um abraço de ignorância onde o verbo é acto.
poeta-higiénico
Acordou determinado a lançar sobre as frases feitas a
borracha implacável da razão. Impunha-se a obrigação moral
de “passar a limpo” as emoções do dia anterior, assim, como
quem limpa a panos o chão depois de um grande sarau.

Seria legítimo retirar a patine de um edifício histórico?

A dúvida não se colocou na altura, e na ausência de
impedimentos, prontamente arremessou o ponteiro da
ciência sobre a fachada da ancestral habitação, escorado
pelo andaime do método e seguro que o resguardo da cultura
o iria proteger na eventualidade de uma queda.

Quando finalmente terminou e se quis vangloriar do seu
feito nada conseguiu dizer, tão “limpo” que estava.
 
noções de economia

dividi os dias em doses tragáveis
p'ra matar à sede a sede da ansiedade.

manhã: é importante levantar cedo
tarde: nunca é demasiado tarde
almoço: não te esqueças de comer
exercício: não andes a correr
jantar: não te esqueças de não te esqueceres de comer
respirar: inspira, expira, inspira, expira…
amanhã: o amanhã não existe
dormir: o mais importante é dormir

o pior espírito é o dependente,
amputado no sentir
por fazer da vida um vício,
por fazer da vida um vício,
por fazer da vida um vício…
sobre clarividência

Procurei
todo o dia, em vão,
um verso…
Um só verso,
capaz de me devolver
a claridade do verão.
Escrevo, agora,
sobre a angústia
de não ter escutado
a morte
de um outono
que, sendo negro,
sabia certo
no coração.
 
 
disfarce

de volta à escrita
visto-me de mulher.
a poesia reclama um hábito
e uma mulher é somente horas e pele,
tacto: olhos, ouvidos e boca fundidos
num sentido apurado, maior.
uma mulher é somente isso - o abismo.
o feminino veste os buracos  do corpo,
habita as dobras da mente.

é tarde…

vestido com “a nudez” espero o poema.
a paisagem cai ao largo, na liça da pele
o monte desenha-se viril,
qual homem varão forjado no tempo.
ríspido, áspero, frio, agreste
estende sobre mim as suas hastes.
toca-me com todos os seus cílios.
 
sobre livros

Nenhum livro contém perguntas.
São meras letras justapostas sobre folhas de papel.
Assim como a escrita em si não existe. O que existe é o
eco!
O livro é apenas uma caixa de ressonâncias.
O eco: a segunda voz do leitor.
Uma voz mais nítida que o confronta
com a inevitável falta de respostas.

Nenhum livro contém perguntas. Nenhum livro oculta
respostas.
Todos são a pergunta, uma pedra no sapato, para alguns o
caminho…

Se é Deus que procuras ele não mora nestas folhas de
papel!



/ a fera
/ lugar-comum
 
a fera

Nesse momento
é ainda a promessa cáustica.
Poderia pura e simplesmente ignorá-lo
e deixá-lo definhar, qual cão moribundo.
Nenhum poema nasce feroz,
e todos são por natureza carnívoros.

Mas não! Sou eu,
quem deliberadamente alimenta a fera
com um pouco de carne
- da minha carne!

Primeiro o nome…
sacrifico-lhe parte do tempo.

Cuidadosamente, vou acautelando
no barranho da mente os restos dos dias
para logo lhe dar de comer à boca,
aquecida, a vianda da dor
servida no cacharro da culpa.

Como cheira bem o estrume da besta!
Uma e outra vez chego-me a ela…

Inevitavelmente,
fecundo-a com a semente da palavra,
dou-lhe um nome, emprenha de ouvir.
Faço-lhe a cama para não perigar,
Faço-lhe a cama para não perigar,
Faço-lhe a cama para não perigar.

Continuo, assim,
a engordar o poema pela pronúncia
até que em mim não caiba.

É um verbo,
come o próprio dono,
desagua na folha.

lugar-comum

cheias as órbitas
do aluvião da escrita
fica o silêncio.

é banal o amor como é banal a beleza
e são banais as horas, a morte, a própria poesia
e toda e qualquer emoção é banal.

são diversas as formas
que a monólito da cultura pode adoptar,
quer seja o suporte ou o fardo que se carrega:

das fundações de um templo helénico
a esse seixo polido das palavras
que se instala no peito e tolhe os dedos das mãos.

fosse outro dia e, seria o seixo o motivo,
a cultura a justificação, a folha em branco um sintoma…
mas hoje não!

hoje, acho que simplesmente me cansei.

estou cansado!
cansado ao ponto  de estar cansado
de estar cansado…

ao ponto de estar farto
dos homens e da sua natureza
tantas vezes excessivamente complexa,
complicadamente excessiva…

tantas vezes difícil e mortalmente fraca,
tantas vezes humana e comiserável
que o problema não é o lugar-comum
é fazer da vida um lugar-comum.


 
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