a idade dos passos

All Rights Reserved © 2014 Samuel Pereira Pinto


Conjunto de textos poéticos que tratam da condição subjectiva do tempo vivido, onde a ansiedade e a melancolia, motivadas pela perda e a degradação da condição humana, surgem como recursos inevitáveis da circunstância de ser Homem dentro de uma vida que, todavia, se pretende circunscrita à comodidade do momento presente. A condição relativa das situações, desconstruídas a partir da individualidade do sujeito, tende a valorizar os momentos banais retidos pela memória. Diante da omnipresença da morte a história contada, não factual, que pauta a verdade do mundo rural legitima o subterfúgio da escrita enquanto estratégia de fuga: um ténue raio de luz, senão o único, capaz de resgatar do esquecimento os afectos quotidianos, remetendo-os para o universo intemporal da arte.
poema maior

conheci o teu rosto
quando nada sabia das letras
e, contudo, sei de cor...

da espessura dos dias
que devolvias ao inverno mais ténue
a cada história lançada ao lume;

da história que brotava farta,
que corria funda, pelos miles de ribeiros
gravados na tua pele churra;

cada verso desse poema crescendo maior
na certeza da memória pétrea
que era a nossa aldeia de afectos
no teu sorriso ganapo...

que era eu, afinal, estampado
e o meu sangue já sábio
nas veias do teu corpo enxuto
de mulher sentada ao tempo
num "barroco" da Beira.
primavera-verão

Porque se demora a Primavera
no verde dos teus olhos,
demoram-se os meus lábios de sede
na tua boca de água...
como a terra seca de Agosto
reencontra a chuva de um Abril passado.

Porque é já a lentidão do Verão
que mora no meu tronco sadio,
detém-se o teu rosto de carne
no meu peito de rocha...
como um rio revolto
espera a certeza do mar imenso.

A melancolia e a ansiedade,
Eu, Tu: duas estações fora de época,
Primavera e Verão
encontrando-se num tempo sem tempo.
todas as palavras

de todas as palavras
as que mais me doem
são as que não sei,
as que desconheço.
não as vadias,
as promíscuas,
as de sangue, afiladas...
mas, exactamente
as que não sei.
essas mesmas
que estando por dizer
ficaram
para sempre
por sentir
no devir dos dias
por chegar!
a idade dos passos

antes de anoitecer...
antes do silêncio do olhar...
não seria tarde ainda
para percorrermos
uma vez mais
os velhos caminhos
cansados
de tantos trajectos
outrora
cedo, por ventura,
para discernir
que trazíamos já
agarrado à sola dos sapatos
o pó dos dias
logo saudade
desse tempo um outro,
desses sapatos...
desse instante
agora avô.
melancolia dos 18

Dia de aniversário.
Parte de casa desmorona-se
quando um familiar fica à porta!
as nascentes

Um dia hei de erguer do pó um barco de palavras:
“fogo, céu, casa, bosque, gruta, ventre, chuva, odre, terra, mãe, eu.”

Um dia hei de erguer um barco de palavras…
e, investido de lume
cruzarei confiante o sombrio vale de lágrimas,
todos os rios de dor,
que confinam o meu ser
imperfeito e doente
E, em silêncio, tornarei à certeza
das nascentes.


Voltarei à certeza das nascentes
onde mora inteiro e impoluto o verbo
e, uma vez no interior da rocha,
sorverei do sal da terra a água
da verdade. o sangue.

Munido de “verdade”,
cevado de “sangue”,
gritarei, então, do alto
ao vento, às árvores, às aves que passam,
e todas as planuras da consciência
o nome do Homem.
A vontade de Deus.
/ as nascentes
/ melancolia dos 18
/ optimismo dos 18
/ a idade dos passos
/ corpo de pau
/ todas as palavras
/ sabedoria
/ primavera-verão
/ poema maior
/ luto
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
optimismo dos 18

Dia de aniversário.
Ferve o corpo com a esperança
de um novo hóspede!
corpo de pau

agora que a chama se extinguiu,
por quem espera, ainda, o teu corpo de pau?

Será pelos meus olhos de água?
Será porque a morte
necessita da consciência dos vivos
para ai montar o seu poleiro?
sabedoria

serve-me mais um!
um só copo mais
cheio de nada,
um cheirinho forte
da espessura dos dias,
que o ‘amanhã’
já tempo não é.
que eu pago!
a certeza
de encontrar
na sabedoria do bagaço
a esperança de ‘hoje’,
matar à sede
o bicho oco
que no jeito,
(neste gesto),
trago!
 
luto

já tenho a mortalha posta.
nas mãos o terço de prata,
o negro xaile do fado,
ninguém me encomendou a sorte.

quem vestiu o fato de ver a Deus, fui eu,
no pão do corpo que reparti pelos apóstolos,
nas lágrimas de sangue que verti por amor
e as que enxuguei com o lençol do rosto.

na verdade que na vida pus
desenhei-me pequeno para os demais,
pintei na fronte um sinal,
o epitáfio do meu talhão:
fiz dos homens a minha imagem,
fizeram de mim cordeiro,
fui cristo pregado na cruz.

lavado que está o cadáver da culpa,
enxuta a carne na rotina das horas,
aberto o peito ao propósito da cova,
é dia de finados. já tenho a mortalha posta.

irei despido de branco, irei impoluto.
irei no chão, na chuva, no vento que passa
e em cada réstia de suor, saliva e palavra
e, olhar de paixão com que fecundei a terra.
sovado dos homens, cevado da poesia,
sem dúvidas, sem dívidas.

com a morte escreverei um testamento novo.
com este verso serôdio pagarei ao barqueiro a travessia. 
 
 
 
cartilha maternal

mãe,
gostava de dizer-te que tudo vai bem,
mas nunca me ensinaste a mentir.

ensinaste-me a falar, soletrar, as palavras.
poderia agora mesmo soletrar-te,
como sempre fiz.
não me peças para to dizer
pois estaria a mentir.
e lembra-te,
nunca me ensinaste a mentir.

ainda assim poderia fazê-lo.
em silêncio, para mim…
ensinaste-me a ler.
poderia ler o que estás a pensar
que deveria segredar,
mas não hoje.

hoje, tenho uma desculpa:
desculpa, mas hoje pesam-me os óculos de ler.
estou a aprender a escrever.

sei que apesar de tudo gostarias
de ouvir da minha boca uma palavra.
sei que se pudesses me terias ensinado…
digo, a escrever.

talvez nunca tenhas reparado,
mas sem a tua voz sou galholho.
N-ã-o   f-a-z  m-a-l!   E-s-t-á  t-u-d-o  b-e-m.





conto de natal

é natal.

na casa grande sobre a água,
a última do povoado,
a minha mãe espera-me de pé
na cozinha, do outro lado da porta.

poderia contar toda a minha vida
nesses escassos reencontros:

primeiro,
as minhas pernas curtas
medrando à sombra,
os olhos descobrindo o céu,
o porvir em bicos de pés.
a minha mão pequena
na sua mão, de mulher.
os nossos olhos fundidos
num momento inominado,
as nossas mãos iguais.

depois,
os seus braços curtos
tentando abarcar o meu tronco
imóvel. a sua cabeça grisalha
repousando no meu peito inerte.
as costas que se curvam -
um beijo!

a porta que se abre.

um menino que chega,
uma mãe que se encontra,
dois corpos celestes
repartindo na mais fria das noites
a nostalgia de uma mesma
centelha de chão.
sobre a pequenez

não me lembro
de alguma vez ter sido assim,
em criança.
eu nunca fui pequeno!
não até saber do mundo,
do seu tamanho,
que com a idade se agiganta.

lembro-me do tempo
em que desenhava com os dedos
na terra molhada umas linhas,
três poças e um círculo - o “mundo”.

ontem, cabia na palma da mão.
segurava-o indivisível entre os dedos,
trazia-o certo na algibeira -
eu, um berlinde.

eu, agora não existo. sou disperso.

por vezes acordo e penso
que terei que dar uma volta inteira…
ao mundo, digo.
para me recompor,
juntar os cacos da memória,
reencontrar esse berlinde perfeito.

o meu pragmatismo de adulto diz-me:
és demasiado crescido e uma vida não chegará
para reconstruir o templo da infância.
- também ele é pequeno.
/ sobre a pequenez
/ conto de natal
/ cartilha maternal
/ obituário aos poemas por cumprir
 
obituário aos poemas por cumprir

doem-me
como os filhos que não tive,
os poemas por cumprir.

não sei se eram tão grandes,
se o tempo me fez miúdo                      
ou a perda os fez em pedra
e é o peso da pedra e do perpétuo
que carrego e os agiganta.

se eram apenas isso:
poemas. e como poemas,
condenados à morte.
dores herméticas, paixões de algodão,
canções de menino
nascidas para a forca
da idade.

sei que estão lá!
que estavam lá.
que não mais existem...
que parte de mim veste de preto
por saber outra parte dispersa,
que algo se perdeu para os anos
e não dará fruto ou semente.

que um pai não deve jamais
saber do filho morto
sob pena de  cavar um buraco
na lei da noite,
e que quando a caneta
toca a folha em branco
são também flores
que enterro na campa
e orações que rezo.

nestas palavras um obituário:
aqui jazem os poemas por cumprir.
devolve-os, senhor, ao eterno descanso.





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